Artigo: 100 mil mortes e por que o luto é uma questão de saúde pública

*Por Jéssica Moreira

Ultrapassamos os cem mil mortos. São cem mil lembranças. Cem mil nomes. Cem mil faces. Cem mil rupturas abruptas que irão ser sentidas nas mais diversas dimensões por aqueles que permanecem em uma nação que nada fez, nada fará, para dar freio ao inimigo invisível que beira todo e qualquer lugar que estejamos.

Não é possível simplesmente ‘tocar a vida’. Precisamos lembrar que as 100 mil perdas são resultado de uma necropolítica (conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe), que, entre outros elementos, expõe uma sociedade ancorada a políticas que definem quem vai viver e quem vai morrer.

Não é difícil identificar que a morte por Covid-19 bateu ainda mais forte nos territórios periféricos. A doença encontrou a já existente vulnerabilidade social, a fome e outras doenças, como diabetes e pressão alta, que acometem principalmente mulheres e homens negros. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 1 de agosto, que tinha uma amostra de 93.563 mortes, pretos e pardos eram 40% dos óbitos. É de todos, mas principalmente do luto dessas famílias que estamos falando.

‘1 milhão de enlutados’

Não são só números de um boletim as vidas que o Brasil deixou pra trás. São histórias, muitas não contadas, que formam teias cheias de afeto, de trajetórias e planos de vida que levarão tempo e energia para serem ressignificadas por quem ficou.

Estamos falando de familiares que não foram ouvidos e que, arrisco a dizer, não serão cuidados em sua dor, tanto individual, quanto coletiva. A morte, tantas vezes tabu, agora está escancarada, mas será que estamos realmente acolhendo quem está enlutado, entendendo que falar de luto também é uma questão de saúde pública?

A psicóloga Gabriela Casellato, organizadora dos livros “Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade” e “O Resgate da Empatia: suporte ao luto não reconhecido” explica que a pandemia seguinte à de Covid-19 pode se tornar a de saúde mental.

“Falamos que a morte de uma pessoa pode deixar, ao menos, outras 11 enlutadas, sendo isso apenas uma média do número de pessoas com vínculos mais estreitos com quem faleceu. Se multiplicarmos esse número dos 100 mil ao menos por 10, já estaremos falando de 1 milhão de enlutados em decorrência de Covid-19 só no Brasil”, explica.

De maneira geral, a cada mil enlutados, ao menos 250 vão desenvolver problemas de origem física e psicológica que devem ser olhados com atenção. “Nesse momento, cerca de 250 mil podem estar nesse estado. Muitas pessoas que, futuramente, serão pacientes do SUS (Sistema Único de Saúde), mas que poderiam ser cuidadas desde o início com tratamento preventivo para amenizar o impacto, para diminuir os custos ou o tempo do tratamento”.

O luto atravessa tudo

Muita gente entende o luto apenas como um processo de tristeza, mas a psicóloga explica que, ao perder alguém, quem fica terá sua vida modificada nos mais diferentes níveis: psicológico, físico, financeiro, afetivo, amoroso, sendo um abalo geral, uma vez que a vida da pessoa que fica não volta mais ao estado anterior, fazendo com que ela passe por um processo de reinvenção.

“Isso demora tempo, requer energia, mas nem sempre a sociedade está disposta a esperar o enlutado. Todo mundo apressa o enlutado para voltar para uma situação de como era antes: o empregador, as redes sociais, a própria família”, alerta.

“Às vezes, até o enlutado se sente desconfortável ao se sentir feliz. É complexo, não é tão simples quanto aquela frase que diz que ‘com o tempo melhora’, pois não é com o tempo que melhora, mas sim como a gente lida com o tempo, como cuida do tempo e como faz pra se ajudar naquele tempo”.

Como apoiar nossos vizinhos, familiares e amigos?

Por experiência própria, posso dizer que a resposta não pode ser simplista. Como já dissemos aqui, nenhum luto é igual, mesmo quando acontece dentro da mesma família. Por isso, eles também não podem ser tratados de maneira semelhante. O que funciona a uma pessoa, pode não ser afetivo para a outra.

“Não temos como generalizar o luto. Cada um vai viver uma experiência diferente. Isso vai depender das circunstâncias da morte. Depende do histórico prévio da pessoa enlutada, se ela tem suporte ou não, se tem com quem conversar. Temos que olhar para cada situação e entender o tamanho do buraco para cada pessoa”, é o que diz Gabriela.

Geralmente, não sabemos muito bem o que fazer, então, nos precipitamos com frases e conselhos que podem não ajudar, mas até atrapalhar a dor do outro. Ela deixa algumas dicas para apoiar quem está passando por um processo de luto:

- Escutar com atenção, respeitando a dor do outro com empatia é um bom começo;

- O enlutado não precisa de uma frase de efeito ou conselho, mas sim sentir que sua dor é válida e entendida pelo outro;

- Perguntar o que está precisando, abrir espaço para o enlutado poder se expressar é também uma possibilidade;

- Para além de ajuda emocional, é possível oferecer ajudas como ir ao supermercado, trazer um prato de comida e ir embora, por exemplo.

*Jéssica Moreira é escritora, jornalista e cofundadora do Nós, mulheres da periferia. Moradora de Perus (SP), é uma das autoras dos livros “Heroínas dessa História“ e “Queixadas – por trás dos 7 anos de greve”.

 

Este texto foi publicado originalmente no Blog “Morte sem Tabu”, do Jornal Folha de São Paulo