F. de S. Paulo: Pandemia deflagra crise do cuidado e põe em risco conquistas femininas

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Sem redes de apoio e divisão igualitária das tarefas da casa, mães perdem autonomia e trabalho

No pior cenário que imaginei para esta reportagem, ela seria substituída por um aviso: “As repórteres, editoras e personagens do texto que ocuparia este espaço, todas mães, não tiveram condições objetivas, sanitárias e humanas para concluírem a proposta inicial. Foi mal. É o que temos pra hoje”.

Os desencontros, interrupções, gritos e choros que acompanharam entrevistas aqui reportadas sugeriam um grau de desarranjo e imprevisibilidade capazes de surpreender os melhores planejamentos.

Também mãe de crianças pequenas e às voltas com as tentativas de acomodar em 24 horas as demandas constantes de três frentes de trabalho (remunerado, doméstico e parental), fiz o que foi possível, não sem me sentir devedora e inadequada mesmo dentro do meu evidente privilégio.

Um ano após o início da pandemia e do distanciamento social no Brasil, mulheres que têm filhos parecem estar no limite. Sobrecarregadas, exaustas e frustradas, elas perderam a autonomia, o emprego, o sono ou a cabeça —tudo junto ou em combinações variadas.

Ao fechar creches e escolas e isolar pessoas, a crise sanitária global fez ruir as redes de apoio (solidárias, públicas ou contradas) que permitiam a essas mulheres ter vida produtiva relativamente independente, ameaçando retroceder conquistas femininas em décadas.

Não surpreende, portanto, que as mulheres tenham sido mais afetadas pela crise global, a ponto de inspirar a expressão em inglês “shecession”, flexão de “she” (ela) e “recession” (recessão) —algo como “a recessão delas”.

Mulheres foram mais impactadas pela pandemia em sua integridade física (com o aumento da violência doméstica) e saúde mental (apresentaram transtornos mentais), além da estabilidade financeira. Elas perderam mais emprego e vêm sendo preteridas nas recontratações, além de não conseguirem participar como antes da produção científica ou mesmo da vida pública.

O percentual de mulheres brasileiras que trabalhavam ou buscavam trabalho no segundo trimestre de 2020 (45,8%) caiu ao mesmo nível de 30 anos atrás (45,8%), depois de se manter bem acima de 50% ao longo de todos esses anos, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e Pnad Contínua.

Para as que conseguiram fazer home office, a sobrecarga do trabalho doméstico aumentou com as crianças (e suas aulas virtuais) em casa, colocando parâmetros pré-pandêmicos de produtividade em xeque.

Já as mães que precisaram sair para trabalhar se viram diante do medo da contaminação e do impasse de não terem com quem deixar os filhos, o que levou ao abandono do trabalho ou a demissões.

Além disso, os setores de alimentos e serviços domésticos, que contratam mais mulheres e mais mulheres negras, foram os mais afetados pela Covid-19, e isso penalizou esses grupos de maneira desproporcional.

Foi assim com Vailma Santos, 26, mãe solo de Heloísa, 5, que trabalhava num restaurante estrelado de São Paulo até maio de 2020, quando foi demitida. “Senti uma turbulência por dentro e um medo enorme de falhar como mãe”, diz, emocionada. “Nunca falo sobre isso. Não tenho tempo”, chora ela.

Contratada no final do ano como auxiliar de limpeza, Vailma hoje remunera a própria mãe para que cuide de Heloísa enquanto ela trabalha. Na volta para casa, se dedica a outros desafios da pandemia materna. “Heloísa confunde S com Z. E professora tem paciência, né? Eu não tenho tanta. Estou sempre cansada”, admite. “Queria oferecer opções melhores pra minha filha, mas sozinha é complicado.”

Transformadas em arremedos de professoras a contragosto, mães tiveram de sobrepor à jornada tripla a responsabilidade pela escolarização remota das crianças.

É uma conta que não fecha. Sem mágica, ela só se resolve à medida que a mulher abre mão de horas de sono, rotinas de autocuidado e tempo de lazer.

Esse pacote compromete o bem-estar físico e emocional dessas mulheres, com repercussões nas próprias funções cognitivas e, portanto, no desempenho produtivo e na funcionalidade.

“O estresse crônico que atinge as mães com a sobreposição desses trabalhos todos trouxe uma sobrecarga de atenção, que agora fica ativada de maneira mais frequente e intensa”, explica o psiquiatra Gilberto Sousa Alves, professor de saúde mental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo ele, que também leciona na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a pandemia provocou uma primeira onda de aumento na incidência de transtornos mentais da ordem de 30%, com medo da morte, consumo excessivo de álcool, estresse pós-traumático pela morte de parentes e até ideias suicidas. Mulheres eram maioria.

O medo da morte bateu com força na atriz e professora de movimento Gabriela Cordaro, 42, mãe de Martim, 7, e Lina, 4. Ela teve suspeita de Covid-19 e, depois, uma sequência de febres inexplicáveis.

“Comecei a ter problemas para dormir. Deitada, ficava pensando em todas as desgraças do mundo e sentia muita insegurança em relação ao que poderia acontecer”, lembra. No auge dessa sensação, ela começou a mandar suas senhas e informações sobre os filhos para a irmã. Vai que...

O psiquiatra Alves avalia que uma “segunda onda de transtornos tem ocorrido agora e é consequência da primeira onda”. “Ela envolve esgotamentos, problemas de sono e de concentração, irritabilidade, esquecimentos, distrações e perdas de compromissos, que ainda geram culpa porque as mães se pressionam e sofrem pressão”, diz.

“Planejar e monitorar tarefas requer muita energia do ponto de vista neurobiológico. E fazer isso o dia todo, por tanto tempo, é muito exaustivo. O cérebro humano não está preparado para esse tipo de uso tão prolongado.”

Andressa Reis, 36, criadora de conteúdo para mães, diz estar nessa loucura. “Tenho filtrado muita coisa para poder focar naquilo que é mais necessário. Se quiser armazenar tudo no meu HD, vou simplesmente pifar”, avalia. “Hoje, eu anoto tudo no planner, só que depois esqueço de olhar.”

A pesquisa Women in the Workplace 2020, que a consultoria internacional McKinsey realiza anualmente com mulheres que trabalham nos EUA, apontou que as profissionais com filhos se sentem 2,6 vezes menos confortáveis que seus pares masculinos para compartilhar sua condição parental, além de se preocuparem 2,1 vezes mais com o julgamento dos colegas sobre sua necessária dedicação a tarefas de cuidado em casa.

“A tarefa do cuidado é uma dimensão importante da vida, mas é percebida socialmente como perda de tempo. Isso leva mulheres que estão em posição de destaque a escondê-las para não parecerem nem frágeis nem menos produtivas”, avalia Noemia Porto, 49, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), mãe de cinco, sendo dois ainda adolescentes, que passou a cuidar também da mãe de 78 anos durante a pandemia.

“Tudo isso coincide com um pano de fundo estrutural, algo que a gente não quis, mas que recebe desde que nasceu. Só que, mesmo assim, resolvemos que vamos viver igualitariamente no espaço público.”

Essa arquitetura patriarcal mantém sobre as mulheres a responsabilidade pela economia do cuidado, tão essencial quanto invisível e desvalorizada, agora também embalada pelos constantes chamados de “mamãe!”. Só não ouve quem não quer.

A multiplicidade de pressões virou de cabeça para baixo a vida dessas mulheres, alterando de maneira determinante as condições objetivas da sua participação no mercado de trabalho e autonomia.

Segundo a série histórica do relatório da McKinsey, mulheres e homens deixavam postos de trabalho com a mesma taxa até 2020, quando o número de mulheres superou o de homens pela primeira vez.

As entrevistadas declaram se sentir ansiosas, estressadas e inadequadas diante de expectativas criadas sob o paradigma pré-pandêmico que hoje lhes parece impossível cumprir.

É humanamente insuportável cumprir essas tarefas todas, das quais eu tentei cuidar como se fosse o planner do escritório”, explica a advogada e psicóloga maranhense Larissa de Oliveira, 37, mãe de Lucas, 5. “Tive uma redução clara de produtividade, e transitar para uma vida estritamente doméstica foi bem difícil."

"Batalhei para ter meu espaço e de repente me vi numa posição que eu lutei muito para não assumir, até por preconceito mesmo. Nossa tendência é enxergar o cuidado como algo menor, mas é uma necessidade básica. Se isso não estiver organizado, nada lá fora funciona”, conclui.

Em 2019, apenas 1 a cada 50 das mulheres entrevistadas considerava desacelerar sua carreira ou deixar de trabalhar para cuidar da casa e dos filhos. Em 2020, a pandemia alterou essa proporção de maneira drástica, e 1 a cada 3 entrevistadas considerava esses caminhos antes inimagináveis.

A sobrecarga por acúmulo de funções é inescapável para as mais de 11 milhões de mães solo do país —majoritariamente pobres e negras.

“Desde março de 2020, estou em home office. De lá pra cá, devido ao acúmulo de funções de uma mãe solo que está com o filho fora da escola, pedi demissão do meu emprego formal de assessoria de imprensa”, relatou a artista visual Bruna Alcântara, mãe de Tom, 5, por meio do canal que a Folha abriu para ouvir o desabafo de mães sobre o contexto imposto pela pandemia.

Bruna conta ter encontrado “tempo para a arte” enquanto “cozinho, lavo, passo e cuido de criança”. Ela é autora das obras que ilustram esta reportagem e integram a série “Mãe Pandêmica”.

“Estou cansada, exausta. Ainda assim, não existe nenhuma maneira de parar de produzir, criar e maternar”, descreve ela. Para Bruna, pesa ainda o fato de o governo brasileiro que, “além de não reconhecer a existência da doença e do seu perigo, também não reconhece as desigualdades de gênero como um problema e como uma questão agravada na pandemia”.

O governo não está sozinho em mais esse negacionismo, sugerem dados sobre a divisão sexual dos trabalhos de cuidado doméstico e com pessoas.

Antes da pandemia, mulheres gastavam, em média, o dobro de horas semanais que homens nessas atividades de cuidado, segundo pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2019.

Com o confinamento, esse abismo parece ter se aprofundado. Segundo pesquisa do Datafolha, encomendada pelo C6 Bank, 57% das mulheres que passaram a trabalhar em regime de home office na pandemia disseram ter acumulado a maior parte dos cuidados com a casa. Entre os homens, esse percentual é de 21%.

Ao entrevistar casais heterossexuais com filhos, o relatório da McKinsey revelou o descompasso na percepção de mães e de pais sobre o próprio envolvimento e responsabilização por esse trabalho.

Enquanto 72% dos pais afirmavam dividir com a parceira em pé de igualdade os cuidados com filhos e casa, apenas 44% das mães diziam o mesmo sobre seus companheiros.

“A gente já entrou na pandemia com um cenário de desigualdade profunda e, em maio, as mulheres já estavam levantando a mão pra avisar que estavam sobrecarregadas”, diz Giulliana Bianconi, 36, mãe de Martina, 5, e diretora da Gênero e Número, organização que analisa dados para amparar os debates de direitos das mulheres. “Cerca de 25% dos brasileiros são crianças e adolescentes. Quem cuida deles?”, questiona.

Para Giulliana, mulheres não cuidam melhor do que homens, mas essa divisão acontece porque cada um se responsabiliza por aquilo que julga ser seu papel. Flexibilidade no trabalho, portanto, tem de ser pensada também para os homens, de modo a permitir que eles também se responsabilizarem por esses cuidados.

“Meu marido tem alguma flexibilidade no seu trabalho, e é isso o que me permite trabalhar também. Se não, acho que eu já teria me separado”, afirma, em tom de brincadeira. “Porque nesse caso a guarda compartilhada liberaria ao menos dois dias úteis por semana para eu me concentrar em outra coisa.”

A psicóloga Evelyse Claussi, 43, mãe de duas meninas, aponta que o Brasil ainda está em processo de desconstruir a mulher como aquela que cuida e o homem como aquele que provê.

“Tem uma naturalização desse lugar materno, que não é biológico, mas uma construção social à qual as mulheres respondem com dificuldade de dizer que têm outros interesses.”
Confortável para os parceiros, essa dinâmica é absorvida pelas crianças, que passam a direcionar suas demandas para quem, de fato, as atende. E isso explica cenas tão corriqueiras quanto surreais, em que crianças gritam pedidos para as mães, mesmo estão sentadas no colo dos pais.

Diante da enxurrada diária desses chamados durante a pandemia, Evelyse passou a reagir com uma barganha bem humorada: “Pago dez centavos para quem disser pai no lugar de mãe!”. Nem sempre dá certo.