Privilégio de juízes: falhas rendem aposentadoria antecipada, não demissão
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Membros do Judiciário gozam de um privilégio incomum entre funcionários públicos
Se cometem uma falta considerada grave, não são demitidos do cargo, mas aposentados compulsória e antecipadamente.
Nesse caso, mantêm um salário proporcional ao tempo em que contribuíram para a Previdência.
Desde 2008, o CNJ antecipou a aposentadoria de 84 magistrados: juízes, desembargadores e um ministro do STJ.
Os motivos vão de falta de decoro no tribunal até acusações de vendas de sentença, nepotismo e assédio sexual.
Mas o número total de aposentados compulsoriamente é maior, já que todos os tribunais do país podem aplicar a penalidade sem passar pelo CNJ.
Questionado sobre o total, o CNJ afirmou não ter esse dado disponível.
Em tese, segundo a Lei Orgânica da Magistratura, um magistrado deve perder o cargo em duas hipóteses:
Em processo administrativo, que o CNJ ou os tribunais podem abrir
Se for condenado em ação penal, por crime comum ou de responsabilidade
Apesar disso, a perda do cargo não significa, necessariamente, a cassação da aposentadoria.
Um juiz condenado de forma definitiva só perde o benefício se isso for determinado pelo tribunal que impuser a pena ou se houver decisão posterior, a pedido de algum outro órgão, como o Ministério Público.
"A cassação da aposentadoria não é automática. Nenhum dispositivo legal prevê isso de forma expressa para magistrados", explica o procurador Celso Tormena, especialista em direito público.
Na prática, a aposentadoria compulsória tem vigorado mesmo quando um juiz tem a condenação confirmada em todas as instâncias.
O desembargador Carlos Rodrigues Feitosa, do Tribunal de Justiça do Ceará, recebe aposentadoria compulsória desde 2019, apesar de ter sido condenado pelo STJ a três anos de prisão. A decisão é definitiva.
O crime: exigir parte do salário de duas funcionárias de seu gabinete para mantê-las nos cargos, em uma espécie de "rachadinha".
O magistrado, que cumpre pena em casa com tornozeleira eletrônica, também foi condenado por criar um esquema de venda de sentenças por aplicativo, cobrando até R$ 150 mil. O processo ainda está na fase de recursos no STJ.
A condenação de Feitosa pela "rachadinha" o fez perder o cargo, mas não a aposentadoria de R$ 39,7 mil por mês.
O pedido de cassação do benefício foi feito pela PGE (Procuradoria-Geral do Estado) em 2021, mas ainda não há decisão judicial sobre o assunto.
A defesa de Feitosa afirma que "continuará buscando a reforma da decisão que lhe foi desfavorável, dentro da amplitude que o texto constitucional lhe garante".
As garantias vitalícias
Quase todos os funcionários públicos no Brasil estão sujeitos a demissão.
As exceções são magistrados, membros do Ministério Público e militares.
Para os dois primeiros, a regra é a mesma: se agirem contra os códigos de conduta da profissão, sofrem punições que vão desde advertência até a aposentadoria compulsória.
Juízes e desembargadores, assim como promotores e procuradores, só perdem o cargo se forem condenados na esfera criminal e o processo transitar em julgado, ou seja, se todos os recursos se esgotarem.
Nas Forças Armadas, o mecanismo é diferente, mas tem efeito prático semelhante.
Se um militar pratica um crime, por exemplo, pode ser expulso, mas não fica desamparado: conforme uma lei de 1960, que vigora até hoje, o Estado presume que esse militar está morto e a família passa a receber uma pensão. É o instituto do "morto ficto".
Ao assumirem seus cargos, juízes e procuradores passam por um estágio probatório de dois anos e, após esse período, só podem ser removidos por uma decisão judicial definitiva.
Proposta de mudança fracassou
Várias propostas foram apresentadas no Congresso, ao longo do tempo, para rever esses privilégios, mas nenhuma foi adiante até o momento.
Uma das tentativas mais recentes foi do ministro Flávio Dino, do STF.
Em fevereiro de 2024, dias antes de tomar posse no Supremo, Dino despediu-se do cargo de senador apresentando uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para acabar com a aposentadoria compulsória das três categorias.
Ao discursar em defesa do projeto, Dino afirmou que existe uma quebra de igualdade "injustificável" entre magistrados e outros servidores públicos.
"A aposentadoria é um direito sagrado de todos. Como é que a aposentadoria, que é um direito que visa assegurar a dignidade, é uma punição? Acaba sendo um prêmio. Infelizmente, há pessoas destituídas de senso ético que não se constrangem de serem, entre aspas, punidas e passam a vida a receber uma aposentadoria porque foram punidas”, afirmou.
O projeto está parado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). O atual presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), estava à frente da CCJ no ano passado e chegou a assinar a PEC como coautor, mas não a colocou em votação.
O novo presidente da comissão, Otto Alencar (PSD-BA), também assinou a proposta, que tem o apoio de 34 senadores —para aprovar a PEC, seriam necessários 49 votos.
Caixa-preta
Apesar de divulgar publicamente as decisões contra os magistrados, o CNJ dá pouca transparência a elas.
Processos administrativos já encerrados, alguns abertos há mais de 15 anos, seguem até hoje em segredo de justiça. A justificativa do CNJ: garantir a presunção de inocência, já que os juízes podem ser alvos de processos criminais, e proteger dados pessoais dos envolvidos.
Segundo a Lei Orgânica da Magistratura, três condutas podem resultar em aposentadoria compulsória: negligência, baixa produtividade ou "procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro" do cargo.
Por essa razão, desvios milionários ou crimes graves como estupro recebem o mesmo tratamento —a aposentadoria compulsória— que ações por desacato, como a do desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O magistrado foi aposentado em 2022 por humilhar guardas municipais que o abordaram em Santos, no litoral paulista, por estar sem máscara durante a pandemia.