Sem dinheiro para aluguel, famílias são despejadas e viram sem-teto durante a pandemia
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Família em área de ocupação em São Paulo, capital
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou, integralmente, na quarta-feira (4), o projeto de lei que proibia as expulsões de imóveis durante a crise de Covid-19. Aprovado na Câmara e no Senado, o texto buscava impedir o despejo em imóveis urbanos determinados pela Justiça até 31 de dezembro deste ano. Para Bolsonaro, o projeto "daria salvo-conduto para ocupantes irregulares de imóveis públicos" que agem de "má-fé".
A decisão do presidente, no entanto, coloca em risco parte dos 22 milhões brasileiros, entre desempregados e subocupados (que trabalham menos do que poderiam ou gostariam) que têm dificuldades para pagar as contas, inclusive a moradia.
Metalúrgico, músico, doméstica, atendente de fast-food, garçonete foram alguns dos profissionais que, na crise gerada pela pandemia, não conseguiram mais pagar o aluguel e acabaram despejados.
Levantamento da Campanha Despejo Zero no país, apoiada por dezenas de movimentos sociais, estima que 14 mil famílias foram removidas de suas casas de março de 2020 a junho de 2021. Mas não há levantamento oficial e os números podem ser maiores.
Famílias que sempre tiveram segurança de um teto agora dependem da solidariedade para comer e da companhia de outras famílias na mesma situação para terem segurança. Elas recorreram a calçadas, praças e ocupações populares.
O fim da renda levou José Bezerra, 69, conhecido como Bezerra do Forró, a morar num quadrado de chão de terra e parede de madeirite na ocupação popular Maria Carolina de Jesus, uma área de mais de 60 mil metros quadrados no Jardim Iguatemi, na zona leste de São Paulo, onde vivem cerca de 130 pessoas.
O terreno abandonado ganhou o nome da escritora mineira autora de “Quarto de Despejo, Diário de uma Favelada" e é pleiteado para moradia pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) desde maio. Um pedido de reintegração de posse já foi negado pela Justiça.
Bezerra ganhava a vida na música, como compositor da banda de forró Amor de Vaqueiro, que segundo ele fazia até dois shows por noite antes da pandemia. Ele vivia na estrada, mas mantinha um sobrado no Jardim da Conquista, também na zona leste. A crise privou as apresentações e o músico não conseguiu mais arcar com o aluguel de R$ 450, sendo obrigado a deixar o local.
A variação de até 30% do IGPM (Índice Geral de Preços do Mercado), que normalmente é usado para reajuste de contratos de aluguel —embora não tenha sido praticado por muitos proprietários— e a inflação alimentar contribuíram para o estrangulamento do orçamento dos mais pobres.
“Minhas roupas mandei lavar, então o que tenho é isso”, diz, apresentando o espaço ao seu redor. Há uma mala, cobertores, uma vassoura, um balde e o colchão onde está sentado. Nos pés, ainda calça o sapato lustrado de músico, preto de verniz e bico fino.
Nos anos 1980, Bezerra trabalhava numa empreiteira e afirma ter chefiado uma equipe de 160 pessoas. Conta que sua trajetória envolve um golpe financeiro, dívidas, a venda do carro e a separação da família. Sem vínculos e sem shows, encontrou abrigo no G3, como é chamado seu “bairro” no assentamento. Ao todo, são 16 grupos (por isso a letra G).
“Essas roupas espalhadas no chão [como um tapete] não me servem, então coloquei para ficar menos frio. Quase que morro na quinta-feira”, afirma, referindo-se ao dia 29 de julho, quando a temperatura chegou a 5ºC.
Enquanto não encontra emprego, Bezerra compõe. Sua última música é dedicada às moradoras da Maria Carolina de Jesus, habitada principalmente por mulheres negras e mães solteiras. Além dos atuais moradores –são cerca de 130–, 3.800 núcleos familiares do movimento reivindicam um teto em São Paulo.
Uma vista aérea do terreno dá a impressão de que o local tem mais habitantes. É que alguns dos barracos de lona estão vazios; eles representam as casas simbólicas dos que hoje não têm moradia.
Eliana de Jesus, 43, mora na travessa próxima à de Bezerra junto ao marido e quatro filhos. Arrumada, com brincos de argola e coque no cabelo, diz que nunca precisou morar na rua. Antes da crise, trabalhava como diarista e ganhava em torno de R$ 480 por mês, R$ 60 por limpeza.
As faxinas cessaram e o emprego do marido, auxiliar de motorista de uma fábrica, também foi cortado. “Não tinha mais condição. O aluguel custava R$ 600, não tinha para onde correr”, afirma Eliana.
A filha de 19 anos, Nicole, dorme no espaço ao lado, no G4/78, onde mantém organizados poucos brinquedos da adolescência, itens de maquiagem e um espelho para se arrumar. “Quero trabalhar na área de beleza”, diz.
No momento, a jovem também não tem renda.
Como ela estão quase 15 milhões de brasileiros, segundo a última Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), do IBGE, com dados sobre emprego e desemprego do trimestre encerrado em maio.
A taxa de desemprego está em 14,6%, mas alguns analistas estimam que o dado pode ser maior porque o IBGE vem fazendo parte da coleta de informações por telefone, devido à pandemia, e porque trabalhadores sem uma colocação podem ter deixado de procurar vaga na pandemia.
O IBGE considera desempregado apenas quem procurou trabalho no período da pesquisa.
Parte considerável dos trabalhadores que perderam a moradia atuava nos serviços, onde a informalidade (que hoje corresponde a 40% dos ocupados) é grande. O setor, dependente do movimento nas ruas, bares e restaurantes, ainda não se recuperou, mesmo com a retomada após o tombo de 2020.
À medida que a vacinação avança, os “bicos” tendem a voltar, mas a esperança de um emprego formal foi adiada, pois depende de um crescimento econômico mais robusto.
A crise também acentuou os contrastes entre as classes sociais, que crescem desde 2015.
“Os que mais perderam são os que menos têm. A desigualdade nas metrópoles se dá pela redução da renda dos 40% da base da pirâmide social. Eles ficaram mais frágeis”, diz Marcelo Ribeiro, pesquisador do Observatório das Metrópoles.
O emprego informal de Jaqueline Felix, 23, mãe de dois filhos, é um dos que ainda não voltaram. Sua renda vinha do atendimento em restaurantes. Como os filhos pararam de ir à creche, ela precisou dedicar mais tempo à educação dos dois em casa.
Com a inflação dos alimentos, da luz e do gás, mudou para o assentamento, onde consegue alimentar os filhos, mas mantém a residência que tem no Belenzinho, bairro da zona leste de São Paulo.
“Uso o auxílio para pagar o aluguel e não perder meu cantinho, que é do lado da creche. Aqui tem ajuda, comida, não fico sozinha”, diz.
Como ela gasta R$ 250 dos R$ 375 que recebe do auxílio emergencial para pagar o aluguel, a ocupação foi a forma encontrada para conseguir economizar nas demais despesas.
Ela não recebe pensão do pai dos filhos.
Na ocupação, uma mulher de 60 anos, ex-diarista, prepara as refeições na cozinha central. Café da manhã, almoço e jantar são servidos todos os dias a partir da doação de alimentos. É possível preparar arroz, feijão, batata e, às vezes, carne. Os moradores também cuidam de uma horta.
“Aqui quase não tem morador de rua. É lugar de muita mãe com criança. Temos regras: não pode andar depois das 22h, não pode usar droga e não pode beber em excesso”, diz Claudia Garcez, que coordenadora a ocupação.
“A gente também não chama de barraco, a gente chama de apartamento, para chamar à existência algo que não existe ainda.”
Em São Paulo, os novos sem-teto estão por toda parte, incluindo os bairros de classe média e média-alta. Na Lapa, antigo polo industrial na zona oeste, o metalúrgico Jonas Evangelista, 30, dorme ao lado da namorada Nicole Milena, 25, na grama de um acostamento.
Ela trabalhava em uma rede de fast-food e ele em uma empresa. Ambos foram demitidos e passaram a acumular dívidas do aluguel, de R$ 700, na favela Jardim Jaqueline (zona oeste).
Após o despejo, vivem com o dinheiro contado para o dia. Evangelista vende balas no semáforo e recebe cerca de R$ 60. Uma hospedaria na Lapa cobra R$ 55 a diária. É melhor do que o albergue, segundo ele.
Com ensino médio completo, seu salário líquido girava em torno de R$ 2.400. “Não estou conseguindo trabalho de jeito nenhum, e não é por má vontade, eu mando currículo para caramba”, diz. "O que adianta para o ser humano é trabalho registrado mesmo."
Em praças de São Paulo, é visível o aumento de barracas de acampamento com pessoas que precisaram se deslocar no último ano. As famílias ficam próximas para ter mais segurança e contar com a solidariedade da população.
Na Sé, região central da capital, a venda dessas barracas virou uma prática: quem consegue dinheiro para sair da rua, passa a lona para o recém-chegado.
Especialistas afirmam que é difícil criar um plano para acompanhar com precisão o movimento de vulneráveis que precisaram migrar para a rua.
"Embora estatísticas mostrem redução da pobreza baseada em renda [devido ao auxílio emergencial], moradores de rua podem não estar incluídos. É um segmento difícil de abordar em pandemia", afirma Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social, referindo-se às pesquisas feitas por telefone.
"Há uma dificuldade de enxergar o problema, em termos de política pública e em termos de mensuração. As não-respostas são importantes, refletem nossa ignorância sobre os aspectos mais relevantes", diz.
Segundo o Despejo Zero, 84 mil famílias estão ameaçadas de despego na pandemia.
Fonte: Folha de São Paulo
Foto: Bruno Santos/Folhapress