Gestão federal tem média de uma denúncia de assédio moral por dia
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Período analisa desde o início do governo de Jair Bolsonaro; servidores relatam perseguição ideológica e constrangimentos
A CGU (Controladoria-Geral da União) recebeu até aqui 680 denúncias de assédio moral apresentadas por funcionários públicos federais durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Isso representa uma média de pouco mais de uma denúncia (1,2) por dia desde o início da gestão.
Lideram a lista os ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Educação, Saúde e Economia, além de Polícia Federal e a própria CGU. Instituições de ensino também aparecem na lista, como a Universidade Federal de Goiás, no topo do ranking.
De janeiro a julho deste ano, por exemplo, foram 254 relatos registrados. Em todo o ano passado, 426, um avanço de 20% em relação aos 356 casos registrados em 2018 e de 49% ante os 285 em 2017, ambos sob a gestão de Michel Temer (MDB).
De acordo com a CGU, parte do aumento de manifestações está relacionada ao crescimento de usuários da plataforma chamada de Fala.br.
Após um decreto, o acesso à ferramenta se tornou obrigatório a órgãos e entidades do Poder Executivo federal a partir de 2018. Antes, as denúncias podiam ser registradas em sistemas ou procedimentos próprios dos órgãos aos quais as ouvidorias estavam vinculadas.
Procurada, a Casa Civil da Presidência da República não se manifestou. Ao jornal Folha de São Paulo a CGU afirmou que, por competência, recebe e processa não apenas denúncias de assédio moral praticadas internamente por servidores do órgão como aquelas relativas a outras entidades do governo federal.
A plataforma Fala.br é apenas um dos instrumentos para denunciar supostos assédios. Servidores ouvidos pela Folha já foram à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal.
O analista ambiental do Ibama José Olímpio Augusto Morelli diz que foi vítima de assédio moral. Ele é o servidor que, em janeiro de 2012, multou o então deputado federal Jair Bolsonaro por pesca irregular no litoral fluminense.
Em março de 2019, logo no início do atual governo, foi exonerado quando estava em Brasília e ocupava um cargo de chefia no Centro de Operações Aéreas do órgão.
"Os constrangimentos se iniciaram com a nova gestão do Ibama. Fiquei sabendo informalmente que seria exonerado em janeiro, mas a publicação veio somente em março. Passei por um processo de fritura, incluindo o assédio moral de colegas do próprio setor", disse.
Morelli, no entanto, não detalhou as situações de suposto assédio por se tratar de um assunto interno.
Segundo Antonio Carlos Aguiar, doutor em direito do trabalho e sócio do Peixoto & Cury Advogados, assédio moral são microagressões rotineiras, ou seja, pequenos atos repetitivos direcionados a uma pessoa que geram constrangimento ou discriminação.
De acordo com Morelli, o assédio moral pode ser uma ferramenta para perseguição política no setor público. Considerado falta grave, pode levar à perda do cargo. "O grande problema é que muitas vezes o ato não é explícito, são atitudes e falas que ficam nas entrelinhas", afirmou.
Além dos ministérios, servidores das universidades federais têm sido denunciados por supostas práticas de assédio moral. As universidades federais de Goiás, de Mato Grosso e do Amazonas lideram a lista. Procuradas, as instituições não se manifestaram.
O secretário-executivo da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), Gustavo Balduino, não relacionou o aumento das denúncias a um fato específico, mas avaliou a situação como grave. "O fato tem de ser apurado, qualquer tipo de assédio é grave."
A Folha ouviu relatos de perseguição de servidores por causa de ideologia. Termos como "esquerda", "petista" e "Lula livre" já foram usados por superiores hierárquicos para questionar o posicionamento político de funcionários públicos.
Outros problemas relatados são supostas ameaças constantes de exoneração e abertura de processos administrativos. Entidades de representação afirmaram que há servidores federais que têm tirado licença não remunerada para evitar passar por constrangimentos.
Um servidor do Ministério da Saúde que preferiu não se identificar relatou que um chefe próximo passou a maltratá-lo. Um tempo depois queria encaminhá-lo a outro departamento e disse que abriria um processo administrativo caso se recusasse. O funcionário disse que as ações causaram sofrimento, deixando-o deprimido e sem dormir.
José Celso Cardoso Jr., doutor em economia e presidente da Afipea (Associação dos Funcionários do Ipea) e Arca (Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável) diz que, além do assédio moral voltado a um servidor específico, as entidades têm mapeado ataques aos órgãos públicos.
As associações têm usado o termo "assédio institucional" para caracterizar supostos constrangimentos, ameaças, desqualificações aos servidores de forma coletiva e à instituição pública feitas por gestores em posições hierárquicas superiores.
Para mapear esses casos foi criado o Assediômetro. A ferramenta já identificou 378 situações de suposto assédio institucional por meio de reportagens e denúncias. "A gestão atual usa o assédio como prática de governo, eles deixaram de atacar apenas individualmente, mas usam o coletivo para desqualificar instituições e servidores", afirmou Cardoso.
Sérgio Pinto, presidente da Asminc (Associação de Servidores do Ministério da Cultura), disse que na Secretaria Especial de Cultura os gestores têm levado pautas ideológicas e preenchido cargos com pessoas sem experiência na área.
"As pautas acabam sendo colocadas em prática por causa do receio de retaliação, entre elas por ameaça e prática de exoneração das funções", afirmou Pinto.
Um funcionário da pasta relatou à Folha que recentemente passou por situação constrangedora. Segundo ele, seu superior perguntou se ele era de esquerda porque o rosto era de petista. O servidor respondeu que era um técnico. Meses depois, ele e colegas foram encaminhados para outro departamento.
Segundo Arthur Koblitz, presidente da associação dos funcionários do BNDES, há perseguição na instituição. "Esse clima de medo e hostilidade existe, isso tem causado um desgaste psicológico nas pessoas."
"Entre os problemas, há o processo de intimidação, demissão arbitrária sem respeitar acordo coletivo de trabalho, destituição de executivos que têm postura mais independente, intimidação de ex-executivos que se manifestam na imprensa", afirmou.
Para auxiliar os servidores do Ministério da Saúde e Ministério da Cidadania vítimas de situações do tipo, a Andeps (Associação Nacional da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais) colocou sua assessoria jurídica à disposição.
"As pessoas têm relatado muitos casos que podem se configurar como assédio moral, tem gente sendo maltratada rotineiramente, muitas ameaças de exoneração, outros com vínculo mais precário estão sendo demitidos", afirmou Rubens Bias, membro da Andeps.
Outro lado
O Ministério da Saúde afirmou que repudia condutas que não atentem à ética e ao profissionalismo na relação de trabalho e disse que eventuais denúncias serão apuradas.
Já o BNDES afirmou que nunca houve demissão arbitrária, apenas uma demissão por justa causa, em conformidade com a legislação trabalhista.
Quanto às mudanças de executivos, disse que foram poucas nos últimos meses e que cargos com remuneração bonificada são de confiança. A instituição afirma que alterações sempre existiram rotineiramente na história do banco e que são uma forma de oxigenar a gestão.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou que, neste momento, há apenas uma denúncia de assédio moral sob apuração de possíveis irregularidades cometidas por servidores e empregados públicos da pasta.
"No ano passado, outras duas denúncias foram feitas e apuradas pela corregedoria do ministério, tendo sido arquivadas por inexistência de indícios de autoria e materialidade de infração", disse a pasta, em nota. "Frisa-se que toda denúncia recebida contra servidor e empregado público é tratada no âmbito da unidade correcional do ministério, sob acompanhamento da CGU."
Os outros órgãos citados na reportagem foram procurados, mas não se manifestaram.
Fonte: Folha de São Paulo